Anunciado em outubro de 2022 pela Konami,
Silent Hill f substitui a ambientação urbana americana da série por um Japão rural dos anos 1960. Nesse novo cenário, elementos como a corrupção orgânica (representada por fungos grotescos e um "mundo apodrecido" em expansão) e segredos ligados a rituais xintoístas alimentam o horror psicológico, em vez do visual industrial e da estética de decadência metálica que marcaram os títulos anteriores.
Essa mudança radical de ambientação gerou debates na comunidade, com até comparações a Fatal Frame, tanto pelo cenário histórico-cultural quanto pela abordagem do sobrenatural. Diante disso, surge a pergunta: Será o jogo uma inovação natural para a franquia ou uma ruptura com sua identidade clássica? É essa questão que exploraremos hoje.
Histórico de Silent Hill
Desde seu lançamento em 1999, Silent Hill revolucionou o horror com uma abordagem introspectiva e simbólica. O primeiro jogo, ambientado na cidade homônima coberta por névoas densas, usava a psique humana como palco: culpa, trauma e dualidade moral eram explorados por meio de criaturas deformadas e puzzles narrativos. A inovação técnica, como o fog para contornar limitações gráficas, tornou-se um marco estético. Já
Silent Hill 2 (2001) elevou a franquia ao status de obra-prima, mergulhando em temas como luto e repressão sexual, enquanto Silent Hill 3 (2003) reforçou a mitologia cósmica da série, conectando cultos apocalípticos a protagonistas femininas complexas.

Nas décadas seguintes, a franquia enfrentou altos e baixos. Jogos como
Silent Hill 4: The Room (2004) e Origins (2007) experimentaram com narrativas não lineares e mecânicas de sobrevivência, mas esbarraram em comparações com os predecessores. Projetos cancelados (Silent Hills, anunciado em 2014 com Hideo Kojima) e títulos polêmicos (
Downpour, 2012) fragmentaram a identidade da série, embora mantivessem vivos elementos-chave: a corrupção ambiental refletindo angústias internas e a exploração de tabus sociais.
Mesmo em reinvenções como Shattered Memories (2009), que substituiu monstros por alegorias do subconsciente, a essência psicológica persistiu. Silent Hill f surge nesse contexto como um paradoxo ambicioso: substitui a névoa por fungos e a cidade por um vilarejo, mas mantém a premissa de que o ambiente é um reflexo do trauma.
O trailer oficial mostra paredes apodrecendo em tempo real, ecoando a degradação visual de Silent Hill 3, onde os cenários se decompunham conforme o avanço do horror.
Tecnicamente aterrorizante
A trilha sonora, composta por
Akira Yamaoka e Kensuke Inage, combina elementos da música tradicional japonesa (como instrumentos de sopro ancestrais) com a atmosfera industrial característica da série. Yamaoka enfatizou que a trilha "cria uma ponte entre o horror psicológico ocidental e o folclore japonês", mantendo a essência emocional que definiu jogos como Silent Hill 2.
Sobre os monstros, o designer Kera explicou que as criaturas de f são inspiradas em yokai (seres do folclore japonês), mas mantêm a carga simbólica da série. Um exemplo é a entidade com máscara ritualística, que representa "o medo do desconhecido e a repressão de segredos familiares", ecoando a abordagem de Silent Hill 2, onde inimigos refletiam traumas pessoais.

Já o Dark Shrine em Silent Hill f não apenas serve como portal para o Outro Mundo, mas também encapsula a dualidade entre tradição e corrupção. Conforme revelado no trailer, o santuário é inicialmente retratado como uma estrutura tradicional japonesa, cercada por lanternas suaves e flores de cerejeira — símbolos de transitoriedade e beleza efêmera na cultura local. No entanto, à medida que a névoa icônica da série envolve Hinako, o ambiente se transforma em um pesadelo de carne, metal e sombras, onde torii (portais sagrados) aparecem retorcidos e a vegetação assume uma aparência quase parasitária. Essa transição visual reflete a proposta da Konami de "encontrar a beleza no terror", típica do horror japonês, onde a perfeição superficial esconde uma decadência profunda.
Ao contrário dos Outros Mundos anteriores, marcados por ferrugem industrial e ambientes claustrofóbicos, a versão de f prioriza uma estética orgânica, ligada à corrupção de rituais e símbolos culturais, como santuários abandonados e kami (divindades xintoístas) distorcidas. A névoa agora atua como catalisadora da transformação do ambiente. Além de ocultar segredos, ela dissolve a fronteira entre o físico e o espiritual, reforçando que o horror emerge da perversão do que é considerado sagrado.
Psicológico abalado
O horror psicológico de Silent Hill sempre priorizou a tensão atmosférica sobre sustos convencionais. Em SH2, elementos como a névoa densa e o chiado do rádio eram mecanismos sonoros que sinalizavam perigo iminente. Em f, o trailer oficial mostra o ar se tornando pesado e visivelmente contaminado por esporos à medida que ameaças se aproximam — uma evolução da premissa de que a antecipação é central ao medo.
A narrativa de f explora segredos coletivos, conforme evidenciado no trailer: cenas de sacrifícios rituais e corpos envoltos em fungos revelam uma comunidade afetada por práticas obscuras. Essa abordagem difere de SH1, onde um culto específico corrompia a cidade, mas mantém a ideia de que o ambiente é um reflexo de traumas. A "infecção" biológica dos fungos, visível nas transformações grotescas do cenário, substitui a corrupção mística de jogos anteriores, mas segue a tradição de usar elementos tangíveis para representar decadência moral.
A protagonista Hinako, descrita pela Konami como uma jovem que "enfrenta o passado para sobreviver", segue o legado de personagens como Heather (SH3), cuja jornada era pautada por um destino imposto, e Harry Mason (SH1), envolvido em conspirações além de seu controle. Materiais oficiais indicam que sua luta está ligada a rituais xintoístas, atualizando a dualidade moral da série em um contexto cultural novo.
Silent Hill f é Silent Hill?
A essência de Silent Hill sempre residiu em como o horror reflete conflitos internos, não na geografia. Em f, a substituição da névoa por fungos e dos cultos por rituais xintoístas não altera esse princípio. A equipe de desenvolvimento reiterou que a série mantém seu cerne: a corrupção ambiental como espelho de traumas, seja através da ferrugem industrial ou da podridão orgânica.
A paisagem como espelho do trauma, os rituais como repressão de verdades e a inovação técnica a serviço da narrativa são pilares que conectam f aos antecessores. Até a mudança para o Japão rural dialoga com as raízes transculturais da série: o primeiro jogo bebia do surrealismo ocidental, enquanto f abraça o horror cíclico do folclore japonês.
Silent Hill f não parece uma ruptura, mas sim uma evolução natural. Ao transpor a essência da série para um novo contexto, prova que o verdadeiro "Silent Hill" não está em Maine, mas na capacidade de transformar medos íntimos em paisagens.
Revisão: Ives Boitano