Uma das atividades mais clássicas das aulas de história do ensino primário é a reencenação do tribunal de Nuremberg, cuja ideia era mesclar didatismo e certa ludicidade ao ensino das consequências da Segunda Guerra Mundial. The Darkest Files opera em uma ideia que remete proposta ao colocar o jogador no papel de uma promotora que trabalha em uma firma especializada em trazer alguma justiça a crimes reais e não resolvidos do período da Alemanha Nazista.
Cutucando a ferida da Alemanha Nazista
Retratando a Alemanha da década de 50, dez anos após a derrocada do nazismo, The Darkest Files traz uma ambientação noir ao lado ocidental do país, que ainda sofre não só com alguns remanescentes do regime, mas também com as feridas abertas dos crimes cometidos e que não tiveram punição ou foram injustamente absolvidos devido à clássica alegação de que os oficiais estavam apenas seguindo ordens.
Esther Katz, nossa personagem principal, é uma recém-chegada a uma firma especializada nesse tipo de caso, e é nesse escritório comandado por um sujeito chamado Fritz Bauer que a maior parte da ação do game acontece. Operando em um ciclo de dias, Esther precisa se debruçar sobre dois casos distintos ao longo da campanha e desvendar a verdade oculta por trás deles.
Para isso, ela deve não só coletar depoimentos dos envolvidos à época — e nem sempre eles vão estar vivos — como também documentos importantes que possam provar ou desmentir qualquer relato que entre em contradição com a realidade aparente. Paralelamente, ela tem que lidar com seus colegas de trabalho, como a secretária Paula e o ex-colega de faculdade Peters, que inicialmente é apresentado como um ser detestável, mas que a realidade logo mostra que ele só queria fazer seu trabalho direito.
Em uma terceira linha narrativa, há também um drama particular que envolve certos conflitos geracionais com os pais da moça. É claro que poucas situações se comparam a visões ideológicas de uma Alemanha Nazista, mas, ao mesmo tempo, é interessante identificar certos paralelos que podem existir em outras sociedades que também passaram por regimes condenáveis.
Além disso, um dos aspectos mais interessantes de The Darkest Files é a forma com que ele se sustenta na realidade ao trazer não só dois casos que realmente aconteceram na vida real como também contextualiza a atuação de Katz, uma vez que o dono da firma, Fritz Bauer, realmente existiu e foi figura importantíssima durante esse período de trazer toda a sujeira dos nazistas à tona. É o único personagem cujo nome verdadeiro é utilizado no game, inclusive.
Os dois casos são realmente bem interessantes e, quando resolvidos, o jogo traz um dossiê mais detalhado a respeito do que realmente aconteceu na vida real e o que foi adaptado para fazer mais sentido dentro do contexto do game, o que traz um valor didático e uma função social muito interessante ao título.
Além disso, ele trata tudo com muita delicadeza. Ao mesmo tempo que não banaliza um assunto tão complicado, consegue, ainda assim, trazer certa ludicidade a ele. Isso não é exatamente novidade, uma vez que This War of Mine, por exemplo, também seguiu em uma abordagem parecida, embora esse tenha mais a preocupação de abalar psicologicamente através do choque do que se desenvolver como um jogo, de fato, ao contrário de toda a sobriedade trazida por The Darkest Files.
Um dos únicos problemas apresentados em relação à história é a maneira como ela parece um pouco incompleta. O fato de qualquer narrativa normalmente se apresentar em três atos distintos (introdução, desenvolvimento e clímax/conclusão) gera um conflito na estrutura interna da curta campanha do jogo, que conta com apenas dois casos e uma conclusão-epílogo bem fria e anticlimática.
É complicado ter que lidar com adaptação de casos da vida real, mas é um pouco chato que toda a história acabe quando existe espaço para mais e a narrativa seguia de uma maneira tão fluida quanto viciante. Parte disso passa pela atuação de voz da maior parte dos personagens, especialmente a de Katz, cujos monólogos internos eram um deleite de se ouvir.
Em contrapartida, as poucas vozes que não colaram parecem exagerar na atuação dramática, como é o caso do próprio Bauer e de Kirchman, uma testemunha aparentemente perturbada pelos horrores da guerra. A impressão é que parece que eles quiseram forçar um sotaque alemão e, na prática, só ficou parecendo uma novela da Glória Perez — considerando ainda que um sotaque alemão só existiria se eles estivessem falando em um idioma que não fosse o alemão.
A objeção agora vem do outro lado
Olhando The Darkest Files do ponto de vista mecânico, como um jogo, ele se mostra essencialmente como um puzzle, um quebra-cabeça em que é necessário cruzar toda a documentação obtida durante o elaborado processo de investigação para então apresentar as evidências durante a fase de tribunal. Para isso, Esther recebe não só os documentos que ela solicita à assistente Paula como também conta com transcrições dos depoimentos que ela coleta dos envolvidos nos dois crimes.
Essas entrevistas funcionam de uma maneira parecida com Life is Strange, uma vez que, quando os intimados começam a depor, Esther e, por consequência, o jogador é trazido diretamente para o cenário do ocorrido e pode ir acompanhando os relatos passo a passo enquanto revira as respectivas cenas do crime atrás de informações adicionais. É possível também se atentar a brechas e inconsistências entre as declarações, que podem ser plenamente contrariadas mediante a documentação.
Explorar esses cenários recriados a partir da memória das testemunhas é sempre bem interessante. Isso porque, embora o bruto de cada um seja sempre o mesmo, cada imersão corresponde a um ponto de vista distinto que traz algumas variações nos elementos que constituem o ambiente, sumindo ou aparecendo de acordo com quem narra.
Com toda a documentação em mãos, cabe à Esther — e, por extensão, ao jogador — tentar determinar o que aconteceu em cada um dos incidentes. Para isso, ela utiliza uma sequência lógica em que é necessário identificar o local e a atuação dos envolvidos durante cada um dos atos do ocorrido. Eventualmente, no tribunal, o advogado irá necessariamente fazer uma objeção a cada frase dita — convenhamos, quem jogou Phoenix Wright com certeza já fez isso —, e é quando Esther precisa apresentar os documentos que ela tem em mãos como prova.
Nas dificuldades menores, basta apresentar o documento e está resolvido. No modo mais complicado, é necessário pegar os documentos e cruzar os parágrafos de forma específica a fim de bancar a argumentação montada pela promotoria. Embora essa dinâmica funcione na maioria das vezes, em algumas ocasiões se trata de uma seleção que eventualmente parece um pouco arbitrária.
Em uma ou outra situação, apresentei documentos que sustentam uma lógica aceita pelo jogo, mas a argumentação feita por Katz foi para uma outra linha que não condiz com a seleção que eu tinha feito. Ou seja, algumas das conclusões não fazem sentido diante do diálogo pré-estabelecido do próprio game, entrando em conflito com uma eventual lógica do jogador — algo que foi corrigido em um patch pouco depois desta análise ser redigida, mas não antes de ser publicada, ressalta-se.
Mesmo com esse tropeço, o jogo ganha pontos ao trazer recursos de acessibilidade e personalização do desafio que podem ser ativados ou desativados a qualquer momento. São bem práticos por ajudarem a dosar a experiência de acordo com a vontade, disposição ou mesmo capacidade do jogador, o que permite que o game seja aproveitado por um grupo amplo de públicos interessados.
50 tons de azul
Um aspecto de The Darkest Files que talvez possa passar batido reside na construção dos ambientes exploráveis por Katz. Não é fácil estruturar uma jogabilidade em um espaço tão pequeno como o prédio do escritório da firma do Bauer e, ainda assim, ser um local que não parece nem restringir demais a área de atuação do jogador, nem cansá-lo pela repetição. As ilustrações estáticas, cujo estilo remete a um gibi, também são bem bonitas e chamam a atenção pela forma dinâmica com que são utilizadas.
Todos os elementos interativos dos cenários — algo que vale tanto para o escritório quanto para as imersões dos relatos — parecem estar no lugar certo. Tudo pareceu bem dosado para manter fluido o fluxo de jogo em vez de atochar com descrições e considerações por vezes inúteis que quase nunca levam a algum lugar. Os jornais e revistas espalhados pelo local são um charme adicional por trazerem notícias reais da própria época, o que colabora um pouco nesse sentimento de imersão e didatismo que o título tenta proporcionar.

Além disso, o game também se destaca a nível estético. A utilização monocromática do azul tinha tudo para ser cansativa, mas o game sabe equilibrar muito bem as texturas e a profundidade entre os elementos a fim de identificar com clareza o que está acontecendo na tela. Além disso, outras cores são sabiamente utilizadas nos momentos mais importantes e conseguem, com muito sucesso, impactar nas ocasiões certas, como o relato de um bombardeio cujas chamas exercem uma presença notável em relação ao resto do cenário.
A maior decepção técnica é que, depois de um tempo rodando — o que significa mais processos ocorrendo dentro de um único save —, a aplicação começa a enguiçar de um jeito que não acontecia no começo da história. Falhas ou atrasos no carregamento, por exemplo, começam a se tornar comuns logo no segundo caso, algo que mina a experiência de um jeito considerável. Algumas conquistas também pipocaram do nada, sem qualquer gatilho que justificasse seu desbloqueio. Por sorte, o sistema de salvamento automático funciona bem, mas é uma chateação a mais ter que ficar recarregando quando algo não acontece quando deveria.
Nunca esquecer (de contar uma história completa, o que também é importante)
De um modo geral, The Darkest Files faz um trabalho muito interessante ao conseguir mesclar didática e jogabilidade em um único produto. Depois de livros, filmes e mesmo jogos que utilizam a Segunda Guerra Mundial, é bacana ver uma proposta diferenciada que trata esse assunto com a delicadeza que ele merece e que, por vezes, em pleno século XXI, acaba sendo quase banalizado. A questão é que, embora o título consiga colocar em prática sua abordagem singular com bastante propriedade, ele não consegue evoluí-la ao longo da curtíssima campanha, resultando em uma experiência bastante positiva no pouco que entrega, mas de impressão geral inconclusiva.
Prós
- Sistemas de investigação dos depoimentos e de apresentação da acusação durante o tribunal é diferenciado e foge do comum em relação a outros jogos com a mesma temática;
- Abordagem histórica executada com delicadeza, sem perder a ludicidade inerente de um jogo;
- Personagens de apoio interessantes e história geral envolvente enquanto ela existe;
- Visual monocromático sublime e muito bem dirigido a nível estético.
Contras
- Conclusão anticlimática da história que vinha se desenvolvendo bem;
- Problemas técnicos persistentes na segunda metade da campanha;
- Lidar com apenas dois processos ao longo do game passa uma sensação de produto incompleto.
The Darkest Files — PC — Nota: 7.0
Revisão: Alessandra Ribeiro
Análise produzida com cópia digital cedida pela Paintbucket Games
The Darkest Files7.0PCOverall, The Darkest Files does a very interesting job of blending education and gameplay into a single product. After books, films, and even games that use World War II as a backdrop, it's refreshing to see a unique approach that treats the subject with the delicacy it deserves, which at times, even in the 21st century, tends to be almost trivialized. The thing is, although the game manages to implement its distinctive approach effectively, it doesn’t evolve it throughout the very short campaign, resulting in a positive experience for what little it offers, but with an overall inconclusive impression.