Ou seja: há muito a se contar por aqui e não tenho a presunção de esgotar a história inteira neste texto. Esta parte é continuação direta da primeira, então não deixe de lê-la antes desta aqui.
Gommage
Criadas mais tarde por Aline, as pessoas da Lumiére do quadro não sabem de sua origem como partes do desígnio de uma entidade maior. Para eles, Esquie, gestrais e grandis são apenas lendas de histórias antigas, enquanto os rascunhos de Clea são temidos e chamados de Nevrons.
Após a Fratura, foi criada a primeira Expedição, sob o número zero, aquela liderada por Renoir, da qual Lumiére não teve mais notícias. O tempo passou até que o povo entendeu o que a Artífice fazia com os números em seu Monólito, levando a vida dos habitantes em nuvens de pétalas e tinta (isto é, Chroma).
O extermínio anual foi chamado de Gommage, palavra francesa que significa “apagamento” ou “esfoliação”. É um termo derivado de “gomme”, isto é, “borracha”, que tem o mesmo sentido duplo que em português de um material de produção e de um objeto comum usado para apagar riscos a lápis.
O Gommage foi incorporado à cultura como um ritual anual de despedida que reunia a cidade no porto, com guirlandas de flores, homenagens e até danças. Algumas pessoas cultuavam a Artífice, enquanto havia aqueles que acreditavam que a sina era uma punição por desafiarem a entidade.
Lumiére decidiu que era hora de enviar uma nova Expedição para descobrir uma forma de evitar aquele destino. A segunda expedição apenas aconteceu 15 anos depois da primeira e recebeu o nome de Expedição 84, em referência ao número pintado no Monólito da Artífice.
Ao partir, a Expedição buscou primeiro encontrar os rastros da sua antecessora. Essa lógica foi incorporada pelas Expedições seguintes: se não pudessem vencer a Artífice e desfazer o Gommage, elas ao menos tentariam abrir trilhas de escalada e deixar informações registradas em diários para que as Expedições futuras tivessem mais conhecimento e chances de chegar cada vez mais longe. Eles usaram de vários recursos para tentar atravessar as terras até seu alvo, como navios, dirigíveis, carros e até submarinos.
De certa forma, as pessoas de Lumiére foram feitas à semelhança de sua criadora e também têm um pouquinho de Artífice em si: elas conseguem usar o próprio Chroma (do mundo? De si mesmas?) para criar objetos a partir do nada, como armas e instrumentos musicais. Elas também podem incrustar Pictos, um tipo de sinais de Chroma, em objetos ou até mesmo na própria pele, aumentando grandemente suas capacidades de combate.
A excêntrica Expedição 60 se valeu apenas de seus poderosos músculos e conseguiu até mesmo atravessar a barreira de Gommage que cerca a Artífice, descobrindo a verdade de que ela era tão prisioneira quanto eles. Se tivessem conseguido retornar a Lumiére em vida e contar o que descobriram, talvez as coisas tivessem sido diferentes no futuro.
Com o tempo, as pessoas foram perdendo as expectativas em relação às expedições e cada vez menos pessoas se voluntariavam para suas fileiras.
Expedição 33
Quando o número no Monólito era o 33, Gustave, engenheiro e o maior conhecedor da história das Expedições, desenvolveu um aparelho chamado Conversor de Lumina, capaz de extrair o potencial dos Pictos para ser usado diretamente pelas pessoas, permitindo que elas acumulassem muito poder. O Conversor foi uma das grandes vantagens que a Expedição 33, integrada por Gustave, possuiu em relação às do passado.
Gustave tinha uma namorada chamada Sophie, mas eles romperam o relacionamento tinham visões diferentes sobre família: ele, confiante de que um dia as Expedições teriam sucesso, queria ter filhos; ela, resignada à vida curta, não quis transmitir a nenhuma criatura o legado de sua miséria. Sophie foi apagada aos 33 anos e, um dia depois, Gustave partiu com a expedição, como planejado.
Como Lumiére era uma cidade povoada por órfãos, Gustave e sua irmão Emma, a Conselheira-Chefe da cidade, seguiram a tradição de cuidar de uma criança cujos pais foram levados pelo Gommage. Assim, eles se tornaram os guardiões de Maelle, a encarnação de Alicia, desde que ela era muito pequena, uma vez que a menina nasceu quando seus pais estavam nos últimos anos de vida e não demorou até que ficasse sozinha no mundo.
Pela diferença de idade, a relação com Gustave era a de uma irmã mais nova, às vezes com ares de filha. Maelle ajudava ativamente outros órfãos como ela, inclusive os pequenos aprendizes de Gustave.
Mesmo sem ter as lembranças de Alicia, havia algo em Maelle que a impelia para fora da cidade. Com uma melancolia insegura por trás de seu olhar fugidio, ela queria conhecer o mundo, sem saber que, na verdade, aquele quadro era seu lugar de brincadeiras em sua vida original e que encarnações de sua família estavam ali fora, ditando as regras. Foi por esse sentimento insondável que ela seguiu Gustave na Expedição 33, uma decisão que logo se mostrou amarga e abriu caminho para uma guinada no conflito dos Dessendre. Sem saber, Maelle era a segunda vantagem para que a Expedição 33 pudesse alcançar seu objetivo inicial.
Lune era uma pesquisadora dedicada a investigar a Artífice e tudo que havia fora de Lumiére. Curiosa, impetuosa e organizada, ela buscou seguir os protocolos das Expedições, um propósito que lhe foi incutido desde pequena. Os pais da moça eram um casal de cientistas que, na visão dela, decidiram ter uma filha para ser sua assistente permanente e que desse continuidade ao trabalho deles depois que fossem levados pelo Gommage. Foi durante a viagem que ela entendeu o quanto o fardo das expectativas a oprimiu ao longo de sua vida.
Sciel era uma fazendeira e fora casada, mas seu marido morreu em um acidente, tirando deles os anos que ainda teriam juntos antes que o Gommage os levasse. Desesperada em sua dor, ela entrou no mar e nadou para longe da costa, buscando morrer afogada. Enquanto ela afundava, Esquie ouviu seu choro e a resgatou, levando-a de volta à praia, algo que ela não se lembrava de ter acontecido.
Em Lumiére, Sciel descobriu que estava grávida, mas que o bebê havia morrido durante o afogamento. A cicatriz em sua barriga era alta demais para ter sido feita nos procedimentos médicos após o aborto, mas não descarto que houvesse relação.
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Sim, eu joguei com Sciel de cachos. |
Durante a expedição, Sciel tomou iniciativa para ter aventuras amorosas com Verso, longe das vistas das companheiras. Os dois formaram laços afetivos, embora sua afinidade não fizesse deles um casal de fato, uma vez que ela nunca esqueceu o amor pelo falecido esposo.
Pelo protocolo, a Expedição 33 desembarcou na mesma praia que os grupos anteriores, mas mal iniciaram sua jornada e foram dizimados por um adversário inesperado: o Renoir da pintura.
Os Gestrais
Maelle foi salva do massacre pelo Curador, sem saber que se tratava de uma manifestação de seu pai, o Renoir original. A garota foi levada à Mansão que era cópia daquela em que vivia a família Dessendre na Lumiére original. Já Lune sobreviveu e encontrou Gustave quando ele estava prestes a dar um tiro na própria cabeça, evitando o suicídio do amigo.
Os dois acharam Maelle, que os levou à Mansão antes do trio partir em busca dos gestrais. Guiados por Noco, um gestral criança e mercador que havia conhecido a menina logo antes, eles chegaram à Vila Gestral, onde conversaram com a chefa, Golgra, uma lutadora formidável que liderava com punhos de ferro.
Os gestrais pareciam bonecos articulados para esboço, enfeitados com pincéis na cabeça. Eles viviam muito tempo e, quando morriam, podiam retornar à vida. Essa foi uma dádiva de Verso para as queridas criaturas que inventou: seus restos eram guardados em jarros e levados ao Rio Sagrado para renascer como gestrais crianças, perdendo parte de suas memórias.
No entanto, devido à natureza caótica desse povo, Golgra decidiu criar uma fila de espera para o renascimento, pois os gestrais adultos não eram suficientes para dar conta de tantas crianças frenéticas e briguentas.
A população gestral foi grandemente diminuída durante a Fratura e foram tantos os que morreram que a reunião de seus corpos altos formava florestas inteiras, à espera do renascimento. Muitos bravos guerreiros partiram pelo mundo à procura de gestrais perdidos na Fratura e, entre eles, estava Noco, um mestre que resgatou um pequeno gestral chamado Monoco e o criou como um discípulo. Monoco era um gestral que o menino Verso inventou fora da pintura, inserindo-o em sua obra assim como fez com Esquie.
Depois, quando Noco morreu e renasceu como criança, Monoco retribuiu o amor recebido e se tornou o guardião dele, tratando-o como um filho. Foi esse Noco que Maelle conheceu e que acompanhou o grupo até que morreu novamente, durante um ataque do Renoir da pintura.
Em suas antigas andanças, Monoco conheceu o Verso da pintura, já separado de Renoir. Em dupla ou em trio com Esquie, eles viveram muitas aventuras ao longo das décadas e enfrentaram muitas batalhas contra Nevrons, tornando-se amigos tão próximos quanto irmãos.
Por isso, quando Verso decidiu se juntar à Expedição 33, após a morte de Gustave, ele achou que a ajuda de Monoco seria valiosa e que o amigo não a recusaria. Monoco sabia a verdade sobre o quadro e o destino dos humanos, mas escolheu a honra de lutar ao lado deles e aproveitou a missão como uma oportunidade para enfrentar mais oponentes poderosos.
Quando estavam na Vila Gestral, Gustave, Lune e Maelle encontraram Sciel, que tinha sido acolhida por aquele povo para lutar na arena. Como os quatro humanos se mostraram guerreiros dignos do respeito dos gestrais, Golgra os enviou à procura de Esquie, o ser que eles só conheciam das lendas.
O grandalhão inflável demonstrou já conhecer Maelle (reconhecendo-a como Alicia) e Sciel (do afogamento), mas preferiu não revelar o passado. Tendo ajuda da Expedição para conseguir suas pedras especiais, Esquie os levou através do oceano, mas, antes de conseguirem dar esse passo, outra tragédia se abateu sobre eles.
A expedição continua
Quando estavam prestes a “embarcar” em Esquie na água, o Renoir do quadro apareceu mais uma vez para impedi-los e, assim como fez antes na praia, derramou sangue, matando Gustave. Verso apareceu no último momento e se colocou em defesa de Maelle, que não entendia o que estava acontecendo. Mais tarde, ele confessou a ela que poderia ter interferido a tempo de evitar a morte de Gustave, mas não o fez por receio de que o grupo desistisse da Expedição após aquele ataque.
Com a ajuda de Verso e, como vimos, também de Monoco, a Expedição chegou até a barreira de Gommage que cercava a Artífice. Eles achavam que ela a protegia, mas, na verdade, era uma prisão. A única maneira de passar seria fazer uma arma a partir de pedaços dos Axons, que precisariam ser derrotados pela Expedição.
Com elementos dos dois Axons, a gigantesca Sérene, que representava o encantamento e a fascinação, e Guardião das Máscaras, aquele que controlava a verdade, o Curador, isto é, a manifestação do Renoir original, criou uma espada para Maelle quebrar a barreira e vencer a Artífice.
Após uma luta intensa, Maelle apagou o Renoir da pintura e, depois, também apagou a Artífice, trazendo a vitória da Expedição. O grupo retornou triunfante para Lumiére, mas uma explosão ao longe lançou uma onda de Gommage e todos os humanos restantes se foram em pétalas melancólicas, restando apenas Verso, o imortal.
Até Maelle foi desfeita brevemente e, nesse momento, ela voltou a se lembrar de que era duas pessoas ao mesmo tempo, duas memórias de 16 anos vividos. Uma nova Maelle tomou forma, com cabelos brancos como os de Verso e Renoir.
A jovem, então com postura mais confiante, garantiu a Verso que o Renoir original era diferente do pintado e que ele iria ajudá-la a refazer a pintura, já que o propósito de retirar Aline dali havia sido concluído. Ela, porém, não imaginava que seu pai continuaria a querer destruir o último quadro de Verso. O homem argumentou que não podia correr o risco de apenas esconder a pintura para que Aline não a encontrasse. Mesmo sem chegar a um acordo, ele estava fraco e não conseguiu impedir que a filha fosse embora de Lumiére. Ele sabia que ela voltaria em breve para enfrentá-lo.

Verso queria que ela abandonasse o quadro para viver sua vida original, mas Maelle permaneceu determinada a conseguir trazer de volta Lune e Sciel. Juntas, elas formaram um plano diferente. Gustave havia descoberto que os corpos petrificados dos expedicionários mortos pelos Nevrons retinham em si o Chroma de Aline, sem sofrer o Gommage. Maelle, como Artífice e em posse do Conversor de Lumina que fora de Gustave, foi capaz de extrair o Chroma e, a partir dele, reconstruir aqueles expedicionários mortos.
À frente desse novo exército, o grupo atacou Lumiére, lutando contra os Nevrons de Vazio feitos de esboços de Renoir, até que o próprio pintor, na forma de Curador, foi alcançado e derrotado em uma batalha monumental que teve a participação dos Axons e até o retorno da Artífice gigante. Com Renoir apagado e a pintura escondida, aquele mundo talvez ficasse a salvo. Ao menos por um tempo.
O fim
No final de tudo, Maelle e Verso tinham intenções diferentes. Ambos queriam impedir Renoir, mas a menina queria continuar vivendo na pintura, onde ela tinha voz e se sentia livre da dor e da pele queimada.
Verso queria libertar o outro prisioneiro da pintura: o último resquício da alma do Verso original, que tinha a forma de escultura fragmentada e continuava a pintar aquele quadro, sozinho e exausto. Esse era o misterioso menino sem rosto que encontramos ao longo da campanha. Era esse o alvo que Clea indicou a Alicia ao mandá-la para dentro da pintura, explicando que o quadro só seria destruído se aquele vestígio final de Verso parasse de pintar.
Naquele ponto, o Verso da pintura percebeu que Maelle apenas seria uma nova Aline, usando a pintura como uma fuga que custaria sua sanidade e, no fim, a própria vida. Ele decidiu que tinha que tirar Maelle dali para que Alicia vivesse sua vida original fora da pintura.
Diante desse impasse, precisamos escolher um lado.
O final de Maelle – uma vida para pintar
Se lutamos como Maelle, Verso é apagado enquanto repete que não queria aquela vida, mas ela volta para Lumiére e começa a reconstrução da cidade, recriando parte da população morta.
A cena final se passa na casa de ópera e mostra Maelle, Gustave, Sophie, Lune, Sciel e seu marido, à espera de uma apresentação de piano de Verso. Lune e Sciel usam roupas iguais às de Maelle, enquanto Gustave e Sophie estão com os mesmos trajes do dia em que a mulher sofreu o Gommage, como se a história tivesse sido desfeita.
O músico está taciturno e hesita em começar a tocar. Ele parece mais velho e não tem mais a cicatriz do rosto que, para ele, simbolizava sua determinação. O peso do olhar marece mostrar que ele tem consciência de que aquele mundo, representado na cena em preto e branco, é como uma cópia da cópia, controlada por Maelle.
Ao olhar para ela, é possível ver o Chroma cobrindo os olhos dela da mesma maneira que acontecia com os corpos originais dos Artífices enquanto suas mentes viviam dentro das pinturas. Esse final mantém o ciclo de escape e negação do luto, assim como Aline fez antes da filha. O mundo pintado por Verso já não era o mesmo há muito tempo e, agora, foi distorcido uma vez mais.
O final de Verso – uma vida para amar
Se escolhemos Verso, ele derrota Maelle, que é apagada e expulsa daquele mundo nos braços do amigo. Sciel entra no local entre-mundos e também se desfaz enquanto aceita a mão que Verso estende, com um semblante sem ressentimento. Esquie e Monoco abraçam Verso antes de deixarem de existir, mas Lune permanece na pintura e se senta de pernas cruzadas, expressando sua determinação. Enquanto é apagada, ela mantém seu olhar acusador diretamente nos olhos de Verso, até o último momento.
Verso leva pela mão o menino que é a alma de seu outro eu e, sem seu pintor, todo aquele mundo é apagado.
Na Lumiére original, a família Dessendre se reúne diante do túmulo de Verso, que morreu em 1905. Renoir e Aline se abraçam em sua tristeza, mas estão próximos mais uma vez para continuar a vida juntos. Clea deixa flores e Alicia segura o boneco de Esquie. Assim como o Verso da pintura havia dito a Maelle, toda aquela história era sobre um ciclo de luto que precisava ser interrompido, o que, finalmente, começará a acontecer. Alicia deixa as vidas do mundo pintado, inclusive a sua própria como Maelle, irem embora, apagadas da existência, mas não da memória.
O luto de quem joga
Em Clair Obscur: Expedition 33 não existe final bom e final ruim. Ambos são melancólicos e não dão um fechamento ao propósito inicial de salvar as pessoas de Lumiére. Não há júbilo, não há certezas; talvez não haja nem mesmo o bastante para considerarmos uma vitória.
Mesmo que o final de Maelle seja tratado pelo jogo de uma maneira mais perturbadora e ilusória, isso não faz com que o final de Verso seja considerado feliz. Afinal, o que foi perdido não pode ser recuperado, o que foi quebrado não pode ficar completo novamente. Assim funciona o trauma do luto.
Assim, nós, que jogamos e chegamos ao final, também temos que lidar com o luto de não podermos salvar de verdade a história e os personagens aos quais nos conectamos. Ah, o existencialismo francês…
Revisão: Beatriz Castro