Análise: The Hundred Line -Last Defense Academy- é, para todos os efeitos, um jogo do criador de Danganronpa

Em 2017, dois funcionários famosos da Spike Chunsoft se demitiram para fundar o próprio estúdio, junto de outros dois colaboradores frequentes. A equipe original do Too Kyo Games, como ficou conhecido, é composta pelos melhores amigos Kazutaka Kodaka e Kotaro Uchikoshi, criadores respectivos das séries Danganronpa e Zero Escape, e do compositor e artista que aparecem em quase todo projeto de Kodaka, Masafumi Takada e Rui Komatsuzaki. Desde então, os quatro se ocuparam com diversos projetos, mas a menina dos olhos do Too Kyo Games é The Hundred Line -Last Defense Academy-, no qual todos ocupam suas respectivas funções de sempre. O título é ambicioso: são mais de 100 finais entre diversos gêneros narrativos, um escopo tão imenso que fez a dupla de diretores se endividar para poder seguir com um ciclo de desenvolvimento que durou oito anos.Jogar Hundred Line, como me referirei ao game pelo resto do texto, é entender exatamente a paixão com a qual Kodaka e Uchikoshi contam histórias de seus bastidores. A obra da vida de todos os envolvidos, com certeza, está aqui — mas será que esse não é só o tal do Danganronpa 4 disfarçado, como todos dizem? Venha comigo para o front de batalha e vamos descobrir!Bora pra guerra, criançada!Hundred Line retrata 15 adolescentes que vivem no Complexo Residencial de Tóquio, um ambiente fechado onde o céu é falso e a vida é plenamente normal. Um belo dia, quando seres conhecidos apenas como “invasores” atacam, os jovens são encontrados por um robozinho esquisito chamado Sirei e convocados a lutar pelo futuro da humanidade. O protagonista é Takumi Sumino, cuja determinação vem da ideia de proteger sua amiga de infância Karua Kashimiya, de quem se separou ao ser mandado para a guerra. Takumi é simpático e assertivo, mas também teimoso; quando algo entra na cabeça dele, é difícil de sair. Seus camaradas de guerra são uma turma diversa: um motoqueiro delinquente de bom coração, um par de gêmeos que só se importa com eles mesmos, uma e-girl desvairada que sonha em fazer parte de um jogo da morte (estilo, sim, Danganronpa ou Zero Escape), entre outros.No melhor estilo de outros títulos assinados por Kodaka, o elenco é enorme e composto, em sua maioria, por diversos estereótipos comuns em animes — estereótipos tais que são subvertidos quanto mais passamos a conhecer os personagens. Alguns se apresentam como insuportáveis de propósito, como o rapazinho que adora contar para todo mundo a todo momento sobre o quanto ele se odeia, mas é tudo a serviço do bom desenvolvimento.Pessoalmente, eu conheço várias pessoas que dizem odiar Danganronpa e tudo que seu autor faz, mas continuam voltando para jogar qualquer coisa com os dedos dele mesmo assim. Pode parecer paradoxal, mas Hundred Line é um ótimo exemplo do porquê desse fenômeno. Debaixo de tanta violência e falta de tato, mora um escritor com valores fortes e um imenso talento para extrair emoções potentes dos jogadores, que ganham força a cada nova reviravolta insana da história (e há várias delas, muito bem escritas e telegrafadas, tudo dentro de um mundo complexo, reflexo distorcido do nosso). Kodaka sempre me passou a impressão de querer ser Yoko Taro; assim sendo, este seria seu NieR:Automata, em vários sentidos.A localização para a língua inglesa também amplifica muito bem o estilo narrativo: não há falta de memes e linguajar autenticamente adolescente. É plenamente possível acreditar que esses personagens são pessoas reais, apesar de toda a estilização anime acontecendo. A dublagem, contudo, sofre de inconsistência: não há como saber quais falas serão dubladas e quais não serão, mesmo em cenas nas quais a maioria é. É possível que isso seja consertado no patch de primeiro dia.Devo dizer, também, que eu nunca gostei de como Kodaka escreve comédia. É tudo a mesma estrutura: alguém diz algo absurdo, outra pessoa reage a esse absurdo (normalmente só dizendo “nossa, que absurdo!”) e a conversa morre por aí, sem qualquer relevância ao resto da cena. O novo título não muda a fórmula em nada. Pior ainda é a repetição constante das mesmas piadas, especialmente as de cunho sexual: por exemplo, uma certa personagem é acusada a cada pouco de se masturbar com a própria espada. Leitores, eu não sei como expressar o quanto eu não quero saber dos fetiches de adolescentes, fictícios ou não — e é em toda cena que essa menina tem. É apelativo, cansativo e não edifica.Em geral, Hundred Line é um jogo muito mais Kodaka do que Uchikoshi na escrita (esse último é o autor completo de alguns finais, mas ficou mais na função de manter a coerência entre as várias partes). Temos aqui as melhores partes do autor, mas as piores, também. Se você já jogou qualquer coisa que ele escreveu, espere algo similar nesse sentido; se este é seu primeiro título “Kodakense”, prepare-se para talvez se sentir ofendido(a) algumas boas vezes.Aqui é matar ou morrer, ou talvez os doisHundred Line não é a primeira parceria entre Uchikoshi e Kodaka, veja bem: em 2020, a dupla lançou o

Abr 21, 2025 - 20:11
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Análise: The Hundred Line -Last Defense Academy- é, para todos os efeitos, um jogo do criador de Danganronpa

Em 2017, dois funcionários famosos da Spike Chunsoft se demitiram para fundar o próprio estúdio, junto de outros dois colaboradores frequentes. A equipe original do Too Kyo Games, como ficou conhecido, é composta pelos melhores amigos Kazutaka Kodaka e Kotaro Uchikoshi, criadores respectivos das séries Danganronpa e Zero Escape, e do compositor e artista que aparecem em quase todo projeto de Kodaka, Masafumi Takada e Rui Komatsuzaki.

Desde então, os quatro se ocuparam com diversos projetos, mas a menina dos olhos do Too Kyo Games é The Hundred Line -Last Defense Academy-, no qual todos ocupam suas respectivas funções de sempre. O título é ambicioso: são mais de 100 finais entre diversos gêneros narrativos, um escopo tão imenso que fez a dupla de diretores se endividar para poder seguir com um ciclo de desenvolvimento que durou oito anos.

Jogar Hundred Line, como me referirei ao game pelo resto do texto, é entender exatamente a paixão com a qual Kodaka e Uchikoshi contam histórias de seus bastidores. A obra da vida de todos os envolvidos, com certeza, está aqui — mas será que esse não é só o tal do Danganronpa 4 disfarçado, como todos dizem? Venha comigo para o front de batalha e vamos descobrir!

Bora pra guerra, criançada!

Hundred Line retrata 15 adolescentes que vivem no Complexo Residencial de Tóquio, um ambiente fechado onde o céu é falso e a vida é plenamente normal. Um belo dia, quando seres conhecidos apenas como “invasores” atacam, os jovens são encontrados por um robozinho esquisito chamado Sirei e convocados a lutar pelo futuro da humanidade. 

O protagonista é Takumi Sumino, cuja determinação vem da ideia de proteger sua amiga de infância Karua Kashimiya, de quem se separou ao ser mandado para a guerra. Takumi é simpático e assertivo, mas também teimoso; quando algo entra na cabeça dele, é difícil de sair. Seus camaradas de guerra são uma turma diversa: um motoqueiro delinquente de bom coração, um par de gêmeos que só se importa com eles mesmos, uma e-girl desvairada que sonha em fazer parte de um jogo da morte (estilo, sim, Danganronpa ou Zero Escape), entre outros.

No melhor estilo de outros títulos assinados por Kodaka, o elenco é enorme e composto, em sua maioria, por diversos estereótipos comuns em animes — estereótipos tais que são subvertidos quanto mais passamos a conhecer os personagens. Alguns se apresentam como insuportáveis de propósito, como o rapazinho que adora contar para todo mundo a todo momento sobre o quanto ele se odeia, mas é tudo a serviço do bom desenvolvimento.

Pessoalmente, eu conheço várias pessoas que dizem odiar Danganronpa e tudo que seu autor faz, mas continuam voltando para jogar qualquer coisa com os dedos dele mesmo assim. Pode parecer paradoxal, mas Hundred Line é um ótimo exemplo do porquê desse fenômeno. 

Debaixo de tanta violência e falta de tato, mora um escritor com valores fortes e um imenso talento para extrair emoções potentes dos jogadores, que ganham força a cada nova reviravolta insana da história (e há várias delas, muito bem escritas e telegrafadas, tudo dentro de um mundo complexo, reflexo distorcido do nosso). Kodaka sempre me passou a impressão de querer ser Yoko Taro; assim sendo, este seria seu NieR:Automata, em vários sentidos.

A localização para a língua inglesa também amplifica muito bem o estilo narrativo: não há falta de memes e linguajar autenticamente adolescente. É plenamente possível acreditar que esses personagens são pessoas reais, apesar de toda a estilização anime acontecendo. A dublagem, contudo, sofre de inconsistência: não há como saber quais falas serão dubladas e quais não serão, mesmo em cenas nas quais a maioria é. É possível que isso seja consertado no patch de primeiro dia.

Devo dizer, também, que eu nunca gostei de como Kodaka escreve comédia. É tudo a mesma estrutura: alguém diz algo absurdo, outra pessoa reage a esse absurdo (normalmente só dizendo “nossa, que absurdo!”) e a conversa morre por aí, sem qualquer relevância ao resto da cena. O novo título não muda a fórmula em nada. 

Pior ainda é a repetição constante das mesmas piadas, especialmente as de cunho sexual: por exemplo, uma certa personagem é acusada a cada pouco de se masturbar com a própria espada. Leitores, eu não sei como expressar o quanto eu não quero saber dos fetiches de adolescentes, fictícios ou não — e é em toda cena que essa menina tem. É apelativo, cansativo e não edifica.

Em geral, Hundred Line é um jogo muito mais Kodaka do que Uchikoshi na escrita (esse último é o autor completo de alguns finais, mas ficou mais na função de manter a coerência entre as várias partes). Temos aqui as melhores partes do autor, mas as piores, também. Se você já jogou qualquer coisa que ele escreveu, espere algo similar nesse sentido; se este é seu primeiro título “Kodakense”, prepare-se para talvez se sentir ofendido(a) algumas boas vezes.

Aqui é matar ou morrer, ou talvez os dois

Hundred Line não é a primeira parceria entre Uchikoshi e Kodaka, veja bem: em 2020, a dupla lançou o singelo World’s End Club, um mistério simples destinado ao público pré-adolescente. Lá, a história é inofensiva, mas a gameplay, assinada pelo estúdio Grounding, é uma absoluta bomba, atormentada principalmente por um péssimo design de níveis.

Quando comecei a jogar a tal obra-prima do Too Kyo Games, uma boa parte de mim esperava um desastre nas mesmas proporções. Fico, logo, imensamente feliz de poder dizer que esse absolutamente não é o caso. (Quem já conhece a Media.Vision, time que desenvolveu o sistema de batalha, vai se surpreender menos do que eu.) 


Aqui, temos um RPG tático relativamente simples, com tudo o que é esperado do gênero: durante os turnos, movemos, atacamos e usamos técnicas especiais. No entanto, o diferencial é que a morte importa tanto quanto a vida. 

Por motivos apresentados na história, seus soldados são incapazes de sofrer o tal permadeath: mesmo que o inimigo os mate ou que se sacrifiquem num último ataque de força total, todos voltam ao fronte na próxima onda. Quando há uma baixa, o medidor de Voltagem é preenchido, o que possibilita que alguém use um golpe forte ou ganhe uma melhoria de status, dependendo da necessidade.

O maior problema é a falta de variedade de mapas: a imensa maioria ocorre no pátio da escola e não sai muito disso. Alguns elementos de gameplay, contudo, evitam a completa monotonia. Não há seleção de quem vai lutar quando, como num Fire Emblem da vida — todos os membros ativos do Pelotão de Defesa Especial devem lutar, e quando as forças precisam se dividir por um motivo ou outro, a história decide quem vai defender qual campo de batalha, o que gera sequências interessantes e imprevisíveis. 

O jogo começa com apenas quatro unidades disponíveis e é a função do jogador desbloquear as próximas, principalmente, por segmentos de “Persuasão”, nos quais devemos nos esforçar para conhecer melhor os outros personagens e descobrir o que os faria lutar conosco. Cada um tem um estilo de gameplay único e interessante, que se conecta às personalidades de cada um: por exemplo, o gêmeo obcecado com a irmã ganha ataque quando ela está com pouco HP, o que pode, talvez, incentivar os jogadores a deixarem ela tomar mais dano. 

Fora da ação, o resto do jogo é bastante similar ao Danganronpa que conhecemos e adoramos (ou odiamos, depende) e apresenta todos os segmentos estilo adventure esperados de algo do gênero. Temos os presentes aos outros personagens, os eventos de tempo livre e até mesmo o joguinho de tabuleiro do controverso Danganronpa S: Ultimate Summer Camp. É tudo bem inofensivo e entra no loop geral sem muitos problemas.

Uma grande falha de Hundred Line, inclusive apontada pelo próprio Kodaka em entrevista, é a precariedade dos controles com teclado. Quem estava prestando atenção às minhas capturas de tela deve ter percebido que elas alternam entre teclado e controle, mas isso foi só porque minha ferramenta de captura ativou o display de teclado — esse jogo é absolutamente impossível de ser jogado dessa maneira. 

Ter um controle é indispensável; usuários do Pro Controller, contudo, devem se preparar para trocar os eixos X/Y e A/B de posição nas configurações, pois ele é lido pelo jogo como se fosse um controle de Xbox, o que foi uma grande fonte da minha confusão nos estágios iniciais. 

Peraí, são QUANTOS finais?! 

A frase acima é a pergunta que todo fã de Hundred Line faz desde seu anúncio. Eu respondo: sim, você não leu errado! São mais de 100 finais distintos, entre diversos gêneros! 

Essa bagunça toda não foi escrita só pelos dois diretores: a maioria dos escritores assistentes já faz parte da casa Too Kyo, mas alguns são convidados de honra. Notavelmente, dois roteiristas do anime de Boruto assinam certas narrativas. 

Uchikoshi disse em uma entrevista que, quando estavam trabalhando na organização e coerência interna das rotas, a principal ordem de Kodaka foi a de que não houvessem finais ruins “fáceis”, causados por escolhas simples demais, e que cada rota levasse a uma conclusão que pudesse ser considerada a “verdadeira”. Com o game nas mãos, confirmo que isso é 90% verdade — algumas certas situações quebram todas as regras propostas, mas vou deixar que os leitores descubram por conta própria.

A pergunta também fica: “preciso mesmo jogar todos os 100 finais?”. A resposta é não, tanto minha quanto dos diretores. A ideia é que jogadores parem quando quiserem, quando tiverem finalmente alcançado o próprio final verdadeiro. Para quem tiver o tempo e a curiosidade de colocar o Pelotão de Defesa Especial em todas as situações possíveis, contudo, isso é plenamente encorajado — não há um único personagem que não ganhe seu merecido destaque nos caminhos sinuosos do flowchart. Seu tempo será respeitado, isso é garantia da casa. 

Glória à humanidade

The Hundred Line -Last Defense Academy- é o exato jogo que Kodaka, Uchikoshi e a turma prometem, em todos os sentidos. Quem já está familiarizado com o trabalho destes autores receberá, ao mesmo tempo, algo perfeitamente dentro das expectativas e completamente fora da casinha, tudo embalado no formato de um divertido e desafiador RPG tático. Mesmo quem não tiver tempo para todos os finais deveria vir conhecer o Pelotão de Defesa Especial.

Prós

  • Personagens interessantes e complexos;
  • História tensa, emotiva e potente;
  • Boa construção de mundo e mistérios;
  • Bem localizado para o inglês;
  • Excelente gameplay, bem integrada à história;
  • Design de narrativa respeita o tempo e paciência dos jogadores.

Contras

  • Dublagem inconsistente;
  • "Humor Kodaka" é cansativo como sempre;
  • Piadas de cunho sexual excessivas;
  • Falta de variedade de mapas;
  • Impossível de ser jogado com mouse e teclado;
  • A versão de PC não detecta bem o Pro Controller.

The Hundred Line -Last Defense Academy- - PC/Switch - Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PC

Revisão: Farley Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Aniplex

The Hundred Line -Last Defense Academy- 8.0 PC The Hundred Line -Last Defense Academy- is the exact game Kodaka, Uchikoshi and co. promise it is, in every way. Those already familiar with these authors' work will receive something that is, at the same time, well within expectations and completely out there, all wrapped up in the form of a fun and challenging tactical RPG. Even those who don't have time for all the endings should come and meet the Special Defense Unit.