Fases de trem nos videogames: o que há nesses trilhos que tanto amamos?

No final do século XIX, os irmãos Lumière promoveram uma série de apresentações públicas a fim de mostrar ao mundo a sua nova invenção, o cinematógrafo, tecnologia que evoluiu até tomar a forma dos projetores que conhecemos hoje. Apesar de não ser a primeira como o senso comum acredita, a mais popular dessas exposições se deu em janeiro de 1896 e consistia na exibição de um filme de um trem chegando a uma plataforma e desembarcando seus passageiros.Há um mito relacionado a essa projeção que diz que os espectadores da época, ainda não acostumados ao conceito de filmes, entraram em pânico por acreditarem que uma locomotiva de verdade iria atravessar a tela e invadir o local onde eles estavam. Não existe qualquer confirmação formal sobre esse acontecido, mas essa percepção ilustra bem o que um trem significa.Sejam eles representantes do estilo Maria Fumaça, metrôs ou trens-balas, os trens representam a combinação perfeita de força e movimento. É por isso que o próprio cinema se aproveitou intensivamente da figura das locomotivas, como no suspense Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951), dramas e comédias, como Viagem a Darjeeling (Wes Anderson, 2007), ou, principalmente, filmes de ação, como Expresso do Amanhã (Bong Joon-ho, 2013), Trem-Bala (David Leitch, 2022) e Kill (Nikhil Nagesh Bhat, 2024).Como é perceptível, são inúmeros os filmes de ação que utilizam os trens como palco ou mecanismo de roteiro. Lembra-se do Homem-Aranha ou do Sr. Incrível impedindo o descarrilamento de suas respectivas locomotivas? Enfim, depois todo esse falatório, é estabelecendo uma correlação com esses mesmos filmes que chegamos onde importa: tal como no cinema, as fases de trens também consistem em alguns dos cenários mais icônicos nos videogames.Quero falar com o maquinistaQuando pensamos no progresso geral para qualquer videogame, um dos principais dilemas é o da linearidade. Como mídia interativa, os games têm como característica a possibilidade do jogador que pode prosseguir no próprio ritmo, escolhendo seus movimentos. A questão é que eles sabem disso, então qualquer tentativa de limitar seus movimentos ou caminho vai pesar negativamente durante o desenvolvimento.Isso também se aplica nos caminhos a serem seguidos. A sétima geração de Pokémon, por exemplo, tem como uma de suas principais críticas a forma como Alola foi desenhada, sem permitir que o jogador possa percorrer as ilhas livremente, fazendo-os presos aos caminhos únicos entre as cidades e em direção aos objetivos. Em situação parecida está Final Fantasy XIII, cujo mundo era composto por várias sequências de corredores em que era necessário apenas percorrer do ponto A ao ponto B.Tendo isso em vista, uma maneira que o game design encontrou para driblar esse eventual questionamento ao mesmo tempo em que precisa direcionar o progresso do jogador é contextual. É possível direcioná-lo por túneis, corredores de construções e outros aspectos, mas as fases de trem, especialmente em títulos de progressão lateral, se mostraram o cenário perfeito para esse tipo de situação.Ao contrário de construções, grutas, florestas, esgotos ou qualquer cenário que, por via de regra, permitiria ramificações de progresso, os trens são quase blindados contra essa hipótese. É um entendimento quase natural e inerente à ideia do transporte ferroviário que, uma vez dentro de um trem, os passageiros estão necessariamente encapsulados dentro do veículo até a próxima estação. A única forma de escapar seria pular dele em movimento.Assim, quando começa um estágio de trem, o jogador, por instinto, sabe que o objetivo, e isso vai do seu instinto básico, é chegar ou no vagão do maquinista, caso tenha começado pelos fundos, ou chegar no último carro, caso, por algum motivo, tenha já começado na cabine do maquinista. O segundo round de Final Fight, que se passa em um metrô, é provavelmente a aplicação quintessencial dessa estrutura.Assassinato no Ecliptic Express (ou algo parecido)Como apontado, enquanto o objetivo de uma fase de trem é geralmente o óbvio, nota-se que um bom jogo sabe muito bem que a jornada dentro do veículo é recheada de possibilidades. Considerando sua estrutura articulada, cada vagão pode servir a fins distintos dentro da própria locomotiva e, por consequência, ao jogador.A fase de trem de GoldenEye 007 é um dos melhores exemplos disso. Ela começa nos fundos, no vagão de carga, passa pelas cabines de passageiros, chega aos carros de estrutura mais chique até ser necessário escapar do comboio, que acaba explodindo.Essa ideia de entra e sai do veículo se conecta com outra prática comum: a de levar a ação para fora da locomotiva, especialmente ao telhado, promovendo uma dinâmica de entrada e saída, contrastando entre ambientes fechados, aparentemente protegidos, e abertos, em pleno movimento e que fomentam uma sensação de vulnerabilidade. Uncharted 2: Among Thieves conta com um icônico segmento que representa esse tipo de situação com maestria.Essa versatilidade de cenários em potencial mo

Abr 20, 2025 - 01:18
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Fases de trem nos videogames: o que há nesses trilhos que tanto amamos?


No final do século XIX, os irmãos Lumière promoveram uma série de apresentações públicas a fim de mostrar ao mundo a sua nova invenção, o cinematógrafo, tecnologia que evoluiu até tomar a forma dos projetores que conhecemos hoje. Apesar de não ser a primeira como o senso comum acredita, a mais popular dessas exposições se deu em janeiro de 1896 e consistia na exibição de um filme de um trem chegando a uma plataforma e desembarcando seus passageiros.

Há um mito relacionado a essa projeção que diz que os espectadores da época, ainda não acostumados ao conceito de filmes, entraram em pânico por acreditarem que uma locomotiva de verdade iria atravessar a tela e invadir o local onde eles estavam. Não existe qualquer confirmação formal sobre esse acontecido, mas essa percepção ilustra bem o que um trem significa.

Sejam eles representantes do estilo Maria Fumaça, metrôs ou trens-balas, os trens representam a combinação perfeita de força e movimento. É por isso que o próprio cinema se aproveitou intensivamente da figura das locomotivas, como no suspense Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951), dramas e comédias, como Viagem a Darjeeling (Wes Anderson, 2007), ou, principalmente, filmes de ação, como Expresso do Amanhã (Bong Joon-ho, 2013), Trem-Bala (David Leitch, 2022) e Kill (Nikhil Nagesh Bhat, 2024).

Como é perceptível, são inúmeros os filmes de ação que utilizam os trens como palco ou mecanismo de roteiro. Lembra-se do Homem-Aranha ou do Sr. Incrível impedindo o descarrilamento de suas respectivas locomotivas? Enfim, depois todo esse falatório, é estabelecendo uma correlação com esses mesmos filmes que chegamos onde importa: tal como no cinema, as fases de trens também consistem em alguns dos cenários mais icônicos nos videogames.

Quero falar com o maquinista

Quando pensamos no progresso geral para qualquer videogame, um dos principais dilemas é o da linearidade. Como mídia interativa, os games têm como característica a possibilidade do jogador que pode prosseguir no próprio ritmo, escolhendo seus movimentos. A questão é que eles sabem disso, então qualquer tentativa de limitar seus movimentos ou caminho vai pesar negativamente durante o desenvolvimento.

Isso também se aplica nos caminhos a serem seguidos. A sétima geração de Pokémon, por exemplo, tem como uma de suas principais críticas a forma como Alola foi desenhada, sem permitir que o jogador possa percorrer as ilhas livremente, fazendo-os presos aos caminhos únicos entre as cidades e em direção aos objetivos. Em situação parecida está Final Fantasy XIII, cujo mundo era composto por várias sequências de corredores em que era necessário apenas percorrer do ponto A ao ponto B.



Tendo isso em vista, uma maneira que o game design encontrou para driblar esse eventual questionamento ao mesmo tempo em que precisa direcionar o progresso do jogador é contextual. É possível direcioná-lo por túneis, corredores de construções e outros aspectos, mas as fases de trem, especialmente em títulos de progressão lateral, se mostraram o cenário perfeito para esse tipo de situação.

Ao contrário de construções, grutas, florestas, esgotos ou qualquer cenário que, por via de regra, permitiria ramificações de progresso, os trens são quase blindados contra essa hipótese. É um entendimento quase natural e inerente à ideia do transporte ferroviário que, uma vez dentro de um trem, os passageiros estão necessariamente encapsulados dentro do veículo até a próxima estação. A única forma de escapar seria pular dele em movimento.

Assim, quando começa um estágio de trem, o jogador, por instinto, sabe que o objetivo, e isso vai do seu instinto básico, é chegar ou no vagão do maquinista, caso tenha começado pelos fundos, ou chegar no último carro, caso, por algum motivo, tenha já começado na cabine do maquinista. O segundo round de Final Fight, que se passa em um metrô, é provavelmente a aplicação quintessencial dessa estrutura.



Assassinato no Ecliptic Express (ou algo parecido)

Como apontado, enquanto o objetivo de uma fase de trem é geralmente o óbvio, nota-se que um bom jogo sabe muito bem que a jornada dentro do veículo é recheada de possibilidades. Considerando sua estrutura articulada, cada vagão pode servir a fins distintos dentro da própria locomotiva e, por consequência, ao jogador.

A fase de trem de GoldenEye 007 é um dos melhores exemplos disso. Ela começa nos fundos, no vagão de carga, passa pelas cabines de passageiros, chega aos carros de estrutura mais chique até ser necessário escapar do comboio, que acaba explodindo.




Essa ideia de entra e sai do veículo se conecta com outra prática comum: a de levar a ação para fora da locomotiva, especialmente ao telhado, promovendo uma dinâmica de entrada e saída, contrastando entre ambientes fechados, aparentemente protegidos, e abertos, em pleno movimento e que fomentam uma sensação de vulnerabilidade. Uncharted 2: Among Thieves conta com um icônico segmento que representa esse tipo de situação com maestria.

Essa versatilidade de cenários em potencial mostra sinergia com o sentimento de claustrofobia exercido por espaços apertados. É algo que acontece em Resident Evil Zero, que explora esse microcosmo de possibilidades ao estabelecer cada vagão do Ecliptic Express como uma sala distinta, promovendo o vai e vem do jogador na resolução dos enigmas apresentados pelo game. Os respectivos metrôs de Dead Space 2 e Silent Hill 3 operam em uma lógica similar ao se aproveitarem dos cenários enclausurados a fim de construir a atmosfera de terror.



De estação a estação

Trens significam movimento constante. Embora sejam lugares fechados, as janelas que trazem um vislumbre do exterior são responsáveis por essa sensação de deslocamento e, em termos amplos de campanha, trazem também consigo a progressão da história como um todo, algo que o movimento a pé nem sempre transmite.

Como locomotivas têm hora determinada tanto de partida quanto de chegada, a sensação de tempo passado é garantida, mesmo que não haja lugar algum especificando esses horários. O simples entendimento do que é um trem já carrega esse tipo de informação por si só e o nosso subconsciente assimila.

Isso fica bem evidente em jogos de progressão lateral, como Teenage Mutant Ninja Turtles IV: Turtles in Time ou o estágio do Charge Man em Mega Man 5. Olhando de fora, a gente sabe que aquele fundo é uma única ilustração em movimento de eterna repetição, mas, durante a jogabilidade, ela contribui para a sensação de movimento constante que o trem proporciona.


Daí, trens são uma das melhores formas de apresentar progressão, transição, porque permitem que o game exprima a sensação de percorrer longos trajetos em pouco tempo. Enquanto o jogador joga e avança pelo trem, o veículo faz o mesmo em uma velocidade cem vezes maior em uma escala macro, permitindo a troca de cenários externos enquanto segue ao seu destino, uma outra localidade. 

Mother Russia Bleeds coloca essa ideia em prática no momento em que faz os personagens principais embarcarem durante o sol crepuscular e, depois de passar um bocado de tempo brigando em diferentes ambientes da locomotiva, já anoiteceu. Metal Slug 2 é outro que apresenta uma fase desse tipo, partindo de um cenário selvagem diurno que vai se tornando uma cidade à noite com a progressão do estágio.




Indo além, Super Mario 3D World, conta com vários estágios de trem. Como diferencial do título, há a mescla de várias perspectivas de câmera durante a progressão lateral dessas fases, que seguem a lógica padrão de começar no vagão dos fundos até o da frente. A questão é que, mais do que estágios apoteóticos contra cada um dos chefes, eles estão sempre posicionados como a última fase de cada mundo. Ou seja, é como se os trens também estivessem fazendo o seu trabalho de transporte e levando o bigodudo e sua turma até o seu destino, o próximo conjunto de fases.

No Tempo das Diligências

Existem algumas especificidades características do trem como temática. É um imaginário popular que, mesmo que o sistema ferroviário voltado tanto para passageiros quanto para carga no Brasil seja praticamente inexistente devido a certas políticas públicas de pouco menos de um século atrás, conseguimos assimilar devido ao bombardeio midiático do resto do mundo.

Os filmes de faroeste fizeram muito desse trabalho sujo, atrelando trens à ideia de transporte de carga e de passageiros, estabelecendo o clichê de “roubo ao trem” e consolidando de vez certos elementos recorrentes, como a possibilidade de direcionar os trilhos para alterar a rota, metralhadoras, túneis milimetricamente cavados por entre montanhas e vales e que fazem com que qualquer um no telhado tenha que se debruçar no telhado do vagão para não ser atingido e além.




Nisso, ambos os Red Dead Redemption oferecem sequências de roubo de trem que fazem jus a esse legado cinematográfico do gênero, com missões que se aproveitam de todos esses clichês e os incorpora na jogabilidade temática como um verdadeiro clássico western.

Nota-se que a dupla de jogos da Rockstar não foi a primeira da temática a fazerem isso, uma vez que Sunset Riders já tinha demarcado seu território ao trazer tanto uma fase em que o personagem acompanha a balduína montado a cavalo quanto um estágio em que é necessário percorrer pelos vagões até enfrentar o chefe antes de concluí-la.




Pelo fato de os cavalos também serem um meio de transporte bem comum dos westerns, outra convenção que se estabeleceu nesse gênero é a perspectiva de acompanhar a locomotiva e invadi-la sem dificuldade. Nos videogames, essa ideia se traduz na facilidade de fazer com que novos inimigos surjam infinitamente, mesmo no limitado espaço de um vagão.

Pokémon Black & White adapta e moderniza essa ideia à sua própria maneira no Battle Subway em um complexo de batalhas em que o jogador vai enfrentando seus oponentes e passando de vagão em vagão até chegar à estação prevista. O metrô também é utilizado como um hub geral no DLC de Splatoon 2. Nele, cada uma das estações vai correspondendo a um estágio a ser completado, com cada uma das linhas servindo como mundos distintos.




Apesar de mais obscuro, Grungrave G.O.R.E. conta com o conjunto completo em sua fase representante, com direito a inimigos entrando no trem em movimento e, nas sequências externas, em cima dos vagões, o jogador precisa ter atenção e esquivar nos momentos certos a fim de evitar as placas e arcos que infringem dano considerável no personagem em tela.

As próprias estações de trem, no que lhes concerne, têm seu mérito na composição de parte desse imaginário que criam toda essa identidade por trás dos trens. Elas representam a efemeridade, simbolizando uma passagem que simboliza tanto o final quanto o começo. O estágio inicial do primeiro Bayonetta é exatamente uma estação, que por sua vez transmite a mensagem de “enfim, cheguei”.

Uma força da natureza a ser subjugada

A percepção simbólica dos trens os coloca como verdadeiras forças da natureza, praticamente imparáveis a não ser em situações muito específicas em que é preciso puxar o freio — um objetivo recorrente — ou dar um jeito nele de maneira externa, forçando-o a descarrilar ou parando-o com pura força bruta. Tendo essa ideia, as locomotivas não são apenas cenários, mas também podem se apresentar como os próprios chefões.

The Legend of Zelda: Spirit Tracks, por exemplo, conta com o trem demoníaco, uma forma utilizada pelo antagonista, Malladus, para percorrer os trilhos espirituais que compõem o principal meio de transporte daquele mundo. A sequência de combate contra ele se passa em um complexo de carreiras em que Link deve conduzir a Maria Fumaça entre os trilhos enquanto vai atirando contra os vagões vulneráveis até desconectá-los do comboio um a um até chegar no carro-chefe.




Falando em Trem Fantasma, o Phantom Express de Cuphead opera de uma forma parecida. Com o herói em uma plataforma paralela aos trilhos, ele precisa encarar o combate contra o chefão em três etapas distintas de combate: os carros traseiros, os centrais e o dianteiro. Nota-se que, aqui, o máximo de movimento que o Xicrinho é atrasar ou adiantar o carrinho sobre o qual ele se posiciona, ao contrário de todo o universo à sua volta, que segue em um movimento constante.

Killer Is Dead, da Grasshopper Manufacture, é outra ilustração dessa ideia. Depois de o protagonista Mondo Zappa percorrer um complexo estágio que conta com todas as peculiaridades que já vimos até aqui para uma locomotiva — ambientes externos, vagões de finalidade distinta, túneis e metralhadoras —, ele enfim chega à sala de máquinas. Lá, precisa enfrentar Tommy, o trem em si, que se tornou senciente e se rebelou após dez anos sucateado e esquecido.




O trem também pode servir de chefe sem necessariamente ser uma entidade sobrenatural, já que basta ele assumir o papel de um inimigo a ser derrotado ou, no caso, destruído. Antes mesmo dos dois Redemption, a Rockstar já tinha nos entregado Red Dead Revolver, que contava com alguns estágios de trens e, em um deles, o jogador pode escolher a própria forma de acompanhar o veículo, seguindo a cavalo ou subindo em um desses carrinhos de mineração, este acoplado com um metralhadora capaz de levar o “chefe” aos ares.

Vale a pena mencionar que Bayonetta 3 traz uma subversão bacana dessa construção da locomotiva como entidade ao fazer com que um trem seja um dos demônios controlados pela Bruxa. Dessa vez, a força do motor a vapor está nas mãos da protagonista, o que contribui para a percepção de que a mulher realmente está numa escala de poder bem acima da média.






Todos a bordo!

Por via de regra, os trens sempre têm um destino, cujo trajeto é determinado pelo conjunto de trilhos que garantem que o veículo siga pelo caminho previsto. Embora contem com movimentação restrita, mais do que meros veículos, as locomotivas são símbolos cujo potencial de possibilidades de gameplay é praticamente infinito e, a julgar pela diversidade dos exemplos trazidos aqui, atemporal. A questão é que, se for para tirar uma conclusão, a verdade é uma só: as fases de trem são legais demais.