Método de Ruptura: o que diz a ciência sobre dupla consciência?
Quem está acompanhando o hit da Apple TV+, Ruptura, já deve imaginar que a tecnologia fictícia de dividir a consciência dos personagens é completamente irreal, algo talvez do distante futuro. É aí que você se engana: por incrível que pareça, a tal ruptura tem raízes em um procedimento muito real — a cirurgia de calosotomia, onde o corpo caloso, que divide os hemisférios cerebrais, é cortado. 10 mistérios do cérebro que ainda intrigam a ciência Quanto pesa o cérebro humano? Confira 7 curiosidades sobre o órgão O procedimento, também conhecido como “separação cerebral”, é feito como um tratamento para aliviar epilepsia intratável por outros meios. Dos cientistas à imprensa, os pacientes de calosotomia chamaram a atenção por mostrarem alguns sinais de “personalidade dividida”, onde cada lado do cérebro parece não conversar com o outro. Sucesso da Apple TV+, Ruptura fala sobre a divisão de personalidades no corpo de uma mesma pessoa: seria isso possível, isto é, fora de transtornos dissociativos de identidade? (Imagem: Apple TV+/Divulgação) A questão é que, assim como a maioria dos assuntos complexos, a ciência não tem um consenso sobre o tema: é verdade que há muitas evidências de personalidades separadas, como pacientes que não conseguem usar o lado esquerdo do corpo para comunicar algo percebido pelo lado direito, mas também há sinais de integração visual por outras partes abaixo do córtex. O que sabemos, então? -Entre no Canal do WhatsApp do Canaltech e fique por dentro das últimas notícias sobre tecnologia, lançamentos, dicas e tutoriais incríveis.- Calosotomia e o cérebro dividido Para compreender os efeitos da calosotomia e seus efeitos para a mente e a consciência, é preciso saber alguns conceitos científicos. O principal é a teoria da “unidade”, que presume que nosso cérebro processa informações — tanto conscientes quanto inconscientes — de maneira unificada, através de uma só mente, também chamada de personalidade. Os estímulos externos passariam, todos, por essa unidade. Nos pacientes que passaram pelo corte do corpo caloso, testes revelaram algumas coisas interessantes. Sabemos que o hemisfério esquerdo do cérebro processa informações do lado direito do corpo e que o hemisfério direito processa o lado esquerdo: também é importante notar que a parte do cérebro dominante sobre o ato de falar, comunicar-se verbalmente, fica no hemisfério esquerdo. Na parte central do cérebro está o corpo caloso, responsável pela integração dos hemisférios cerebrais — seu corte ajuda pacientes de epilepsia, mas compromete algumas funções comunicativas (Imagem: John A Beal/Louisiana State University) Um paciente de calosotomia chamado Joe passou por alguns testes, um deles envolvendo mostrar a palavra “Texas” apenas para seu olho esquerdo — algo que o lado direito do cérebro interpreta. Com a mão esquerda, ele conseguiu desenhar um chapéu de caubói (aspecto da cultura relacionada ao estado americano em questão), mas não conseguiu explicar o raciocício por trás da ação, algo que a parte do cérebro responsável pela fala não tinha acesso. Ao mesmo paciente, foi mostrado um número ao olho esquerdo, que a fala deveria tentar adivinhar — ele não acertou de primeira, mas podia usar a mão esquerda (controlada pelo lado direito do cérebro) para apontar para cima ou para baixo para indicar se o número chato era mais alto ou mais baixo do que a resposta correta. Com ajuda da mão, Joe chegou ao resultado. O que isso quer dizer, então? À primeira vista, parece que estamos vendo dois “agentes”, duas personalidades conversando! Teriam os pacientes de calosotomia dois agentes cerebrais que não conseguem se comunicar entre si? Foi isso que muitos neurologistas concluíram, notando um agente cerebral que consegue se comunicar e outro “mudo”, que não fala, mas consegue apontar coisas. Seria possível que cada hemisfério do cérebro tenha uma personalidade única, mas que apenas "conversa" com o outro lado para unificar as percepções? Alguns cientistas acreditam que sim (Imagem: Bhautik Patel/Unsplash) Mas as coisas não são tão simples: algumas anomalias nos testes mostraram que há, sim, alguma conexão entre os lados do cérebro. Pacientes conseguiam dizer se linhas diferentes mostradas separadamente a cada lado do campo visual se encontrariam ou não ou identificar se desenhos sequenciais davam a impressão de movimento ou não, provando ao menos alguma integração entre os lados. Além disso, partes não cortadas do tronco cerebral, abaixo do córtex, como o colículo superior, sabidamente ajudam a integrar informações visuais entre os hemisférios. A ruptura existe, afinal? O que isso tudo, no fim das contas, quer dizer? Os cientistas, apesar de não cravarem certezas, possuem algumas teorias. Uma delas afirma que até o cérebro normal seria, de fato, dividido entre dois agentes, que sincronizam suas percepções e comportamento de várias maneiras, o que seria prejudicado pela calosotomia. Outra afirma que o cérebro te

Quem está acompanhando o hit da Apple TV+, Ruptura, já deve imaginar que a tecnologia fictícia de dividir a consciência dos personagens é completamente irreal, algo talvez do distante futuro. É aí que você se engana: por incrível que pareça, a tal ruptura tem raízes em um procedimento muito real — a cirurgia de calosotomia, onde o corpo caloso, que divide os hemisférios cerebrais, é cortado.
- 10 mistérios do cérebro que ainda intrigam a ciência
- Quanto pesa o cérebro humano? Confira 7 curiosidades sobre o órgão
O procedimento, também conhecido como “separação cerebral”, é feito como um tratamento para aliviar epilepsia intratável por outros meios. Dos cientistas à imprensa, os pacientes de calosotomia chamaram a atenção por mostrarem alguns sinais de “personalidade dividida”, onde cada lado do cérebro parece não conversar com o outro.
A questão é que, assim como a maioria dos assuntos complexos, a ciência não tem um consenso sobre o tema: é verdade que há muitas evidências de personalidades separadas, como pacientes que não conseguem usar o lado esquerdo do corpo para comunicar algo percebido pelo lado direito, mas também há sinais de integração visual por outras partes abaixo do córtex. O que sabemos, então?
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Calosotomia e o cérebro dividido
Para compreender os efeitos da calosotomia e seus efeitos para a mente e a consciência, é preciso saber alguns conceitos científicos. O principal é a teoria da “unidade”, que presume que nosso cérebro processa informações — tanto conscientes quanto inconscientes — de maneira unificada, através de uma só mente, também chamada de personalidade. Os estímulos externos passariam, todos, por essa unidade.
Nos pacientes que passaram pelo corte do corpo caloso, testes revelaram algumas coisas interessantes. Sabemos que o hemisfério esquerdo do cérebro processa informações do lado direito do corpo e que o hemisfério direito processa o lado esquerdo: também é importante notar que a parte do cérebro dominante sobre o ato de falar, comunicar-se verbalmente, fica no hemisfério esquerdo.
Um paciente de calosotomia chamado Joe passou por alguns testes, um deles envolvendo mostrar a palavra “Texas” apenas para seu olho esquerdo — algo que o lado direito do cérebro interpreta.
Com a mão esquerda, ele conseguiu desenhar um chapéu de caubói (aspecto da cultura relacionada ao estado americano em questão), mas não conseguiu explicar o raciocício por trás da ação, algo que a parte do cérebro responsável pela fala não tinha acesso.
Ao mesmo paciente, foi mostrado um número ao olho esquerdo, que a fala deveria tentar adivinhar — ele não acertou de primeira, mas podia usar a mão esquerda (controlada pelo lado direito do cérebro) para apontar para cima ou para baixo para indicar se o número chato era mais alto ou mais baixo do que a resposta correta. Com ajuda da mão, Joe chegou ao resultado.
O que isso quer dizer, então? À primeira vista, parece que estamos vendo dois “agentes”, duas personalidades conversando! Teriam os pacientes de calosotomia dois agentes cerebrais que não conseguem se comunicar entre si? Foi isso que muitos neurologistas concluíram, notando um agente cerebral que consegue se comunicar e outro “mudo”, que não fala, mas consegue apontar coisas.
Mas as coisas não são tão simples: algumas anomalias nos testes mostraram que há, sim, alguma conexão entre os lados do cérebro. Pacientes conseguiam dizer se linhas diferentes mostradas separadamente a cada lado do campo visual se encontrariam ou não ou identificar se desenhos sequenciais davam a impressão de movimento ou não, provando ao menos alguma integração entre os lados.
Além disso, partes não cortadas do tronco cerebral, abaixo do córtex, como o colículo superior, sabidamente ajudam a integrar informações visuais entre os hemisférios.
A ruptura existe, afinal?
O que isso tudo, no fim das contas, quer dizer? Os cientistas, apesar de não cravarem certezas, possuem algumas teorias. Uma delas afirma que até o cérebro normal seria, de fato, dividido entre dois agentes, que sincronizam suas percepções e comportamento de várias maneiras, o que seria prejudicado pela calosotomia.
Outra afirma que o cérebro teria um só agente, mas, quando dividido, não consegue mais integrar a informação completamente, como quando o áudio de um filme está dessincronizado da imagem.
Uma das implicações disto seria, nos testes onde o paciente não consegue nomear um objeto observado, que ele consegue de fato ver o que está à sua frente, mas a desconexão cerebral o impede de lembrar do nome ou do conceito, levando-o a dizer que não vê nada.
Indo mais a fundo, alguns teóricos tentam entender se há, de fato, uma conexão entre percepção e consciência: talvez o processamento de informações seja algo inconsciente que ocorre com todos os cérebros e funciona gradualmente, sendo apenas mais óbvio em quem teve os hemisférios divididos.
Só teremos certeza se personalidades divergentes realmente surgem com a calosotomia ou se diferentes percepções já fazem parte da vida de todo humano quando teorias sobre a consciência forem comprovadas, mas, até lá, o assunto continuará fascinando neurologistas, psicólogos e curiosos em geral — e, talvez, gerando ótimos conceitos de ficção científica na cultura pop.
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